Alexandre Farto, mais conhecido por Vhils, começou aos 13 anos a pintar comboios e paredes com graffiti e tornou-se famoso pelos seus retratos de grande formato nas fachadas dos prédios. Não os pinta, faz a sua silhueta e depois esculpe a parede com ajuda de um cinzel. Agora, com 28 anos, é um dos nomes mais reconhecidos da arte urbana mundial.
“Gosto aproveitar e reutilizar os restos de uma sociedade excessivamente materialista”
“O objetivo do meu trabalho é gerar discussão e reflexão”
“Sem o risco o graffiti não seria o mesmo”
Estas são as reflexões de Alexandre Farto ou Vhils, um artista ímpar que a prestigiada revista Forbes inclui na sua lista “30 under 30“: um top que destaca os 30 jovens com menos de 30 anos que merecem reconhecimento internacional. Assim, subimos ao nosso Ford e fomos ao encontro deste criador, que nos deu esta entrevista exclusiva.
GoFord: Que histórias gosta mais de contar nas paredes?
Vhils: Essencialmente histórias de pessoas e a relação que têm com os lugares onde vivem, com base no conceito de moldagem recíproca que existe entre elas. Gosto de explorar ligações e assimetrias entre a realidade local e a realidade global, entre pessoas e o meio. O trabalho encontra-se ligado por uma reflexão abrangente sobre o presente modelo de desenvolvimento socioeconómico, a vida nas sociedades urbanas contemporâneas e o desenvolvimento da identidade individual nestes contextos, analisando algumas das suas características e dissecando alguns dos seus aspectos no plano da crescente uniformização global, mas depois cada corpo de trabalho é usado para desenvolver uma reflexão mais particular dependendo do contexto em que surge ou é apresentado.
Qualquer lugar serve para pintar ou demora em encontrar o lugar certo?
Depende muito da natureza do projecto. Há alguns que são pessoais, em que a escolha é feita em função daquilo que o projecto irá abordar e as paredes que se conseguem encontrar com as características que se querem. Neste caso a liberdade de acção é maior, mas mais uma vez depende daquilo que se pretende: no caso do trabalho desenvolvido com uma comunidade específica, por exemplo, irá abordar questões que se ligam directamente a ela e ao local onde esta vive, logo a escolha é feita em função destes elementos. Há ainda casos em que uma peça é criada no âmbito de um evento específico e aí o local é geralmente atribuído pela organização.
Graffiti ou retratos, alguma preferência?
São áreas distintas. Graffiti é uma actividade pessoal desenvolvida longe do conhecimento público, enquanto os retratos fazem parte da obra artística que é desenvolvida publicamente. A obra não é graffiti e o graffiti não faz parte da obra, apesar de esta dever muito ao que aprendi a pintar graffiti, quer em termos de relação com o espaço urbano, quer em termos dos conceitos que tenho explorado e algumas das ferramentas e técnicas que tenho desenvolvido. Essencialmente o graffiti cumpre uma função enquanto a obra cumpre outra. Em termos pessoais são as duas igualmente importantes, mas em termos públicos o que interessa é a obra.
Já trabalhou com explosivos. Que tipo de materiais gosta mais de utilizar?
Não rejeito nada à partida, gosto de trabalhar com tudo aquilo no qual vejo potencial. Tenho recorrido muito a materiais descartados e menos nobres, que vem da intenção de explorar aquilo que o meio urbano oferece, tanto em termos conceptuais como materiais. Gosto de valorizar aquilo que foi descartado e de trabalhar com materiais rejeitados, de reaproveitar e reutilizar as sobras de uma sociedade excessivamente materialista, assim como trabalhar com o caos e o acaso que o meio urbano oferece.
Com os seus trabalhos, procura mais a provocação ou a reflexão?
A reflexão, sobretudo. Gosto de pensar que as peças estimulam as pessoas, que lhes oferecem uma base para a reflexão sobre questões que considero importantes. Não têm por objectivo ser provocatórias, não criticam directamente, não oferecem soluções para as questões em causa, mas ajudam a divulgá-las e chamam a atenção das pessoas para elas. O objectivo é que gere discussão e reflexão.
Como escolhe o rosto que vai representar uma cidade?
A escolha das pessoas retratadas é feita em função do projecto. Há projectos desenvolvidos especificamente para um local, onde as pessoas são escolhidas em função da relação que têm com o mesmo, enquanto outros podem ter uma ligação com um projecto iniciado noutro local, recorrendo a imagens e retratos já trabalhados noutro sítio. Ou seja, há retratos que representam pessoas específicas em ligação com as comunidades ou locais onde estas habitam, há outros que representam pessoas de outros locais, sublinhando o contraste entre realidades locais e realidade globais, e outras ainda onde os retratos são compósitos criados a partir da fusão de várias imagens que também falam da aglutinação de identidades gerada pela globalização.
Encontrou muitas pessoas sem identidade?
Não, apesar da crescente uniformização, por um lado, e alienação, por outro, a que assistimos nas sociedades urbanas contemporâneas, todas as pessoas têm a sua identidade, embora a identidade de umas possa ser mais visível do que a de outras. Muitos dos projectos que desenvolvo têm por objectivo ajudar a tornar visível aquilo que é invisível.
Qual é a parte mais difícil do seu trabalho?
As entrevistas! O desenvolvimento de uma peça pode oferecer muitas dificuldades em termos de meios ou logística, mas depois explicá-la de forma adequada em poucas linhas parece-me muito mais difícil.
Como português, conhece bem a realidade do seu país, como faz quando trabalha em outras cidades? Como consegue captar tanta sensibilidade nos rostos?
Parto do mesmo princípio. Faço alguma pesquisa antes de chegar ao local, que é depois complementada com pesquisa no mesmo. O local dá um fundamento importante ao trabalho, mas este tem essencialmente uma dimensão local e uma dimensão global. A dimensão local é dada através da realidade onde é realizado, ou seja, há uma ligação estrutural forte com o meio onde cada peça é criada ou apresentada, uma ligação de contexto mas também de matéria e temática. Os temas específicos que exploro têm origem nessa cidade, os materiais também provêm desse contexto, as pessoas retratadas muitas vezes também, assim como as cores, os padrões e outros elementos gráficos que por vezes incluo nas peças. Tudo isto vem da pesquisa e das minhas observações no terreno. Depois cada um destes contextos e cada uma destas peças tem uma ligação com uma reflexão maior que se estende a todo o trabalho: uma ligação com a realidade global onde se inserem esses pequenos contextos, e uma leitura abrangente sobre a crescente homogeneização dos espaços urbanos à volta do mundo que se encontra a transformar as características outrora marcadamente únicas destas realidades locais.
Sente que a sociedade actual respeita a arte urbana ou esta ainda não ocupa o papel que merece dentro do mundo da arte?
Sinto que nos últimos anos tem havido uma crescente aceitação e interesse por parte do público que reflecte uma tendência muito interessante que tem contribuído para enquadrar e valorizar estas formas de intervenção no espaço público. Esta evolução tem sido muito positiva.
Acha que as pessoas têm medo de agir no espaço público? É preciso arriscar muito para pintar paredes ou comboios?
Sim, por um lado acho que há algum medo, mas por outro também alguma apatia. Para desenvolver projectos em grande escala, que são maioritariamente comissionados, não há risco, mas em termos de graffiti sim, o risco pode ser grande, mas é isso que se torna aliciante. Sem risco não seria o mesmo.
Em que cidade gostava de realizar um retrato?
São muitas, mas prefiro ir realizando projectos do que sonhá-los.
Ser um artista conhecido, fez-lhe mudar na forma de trabalhar? Sente mais pressão?
Talvez haja um aumento de responsabilidade, mas o modo de trabalhar e a relação com as peças, da atenção ao prazer, continuam essencialmente os mesmos. Sem querer retirar importância à dimensão que a obra tem ganho, a minha vida não tem mudado de forma significativa, quer em termos pessoais, quer em termos profissionais.
Também trabalha dentro do estúdio. Gosta de inventar muito?
Sim. O estúdio é uma espécie de laboratório onde consigo desenvolver várias experiências ao mesmo tempo. Esta sempre foi uma componente muito importante do trabalho, e uma das que me dá mais prazer. Gosto de mexer com os materiais, de arriscar, de ver até onde os consigo levar. É da experimentação que têm surgido muitos dos corpos de trabalho que tenho desenvolvido, incorporando aquilo que resulta e até mesmo erros e assimetrias que daí surgem. O facto de trabalhar em várias áreas e sobre vários suportes é expressão desse interesse. Cada suporte acaba depois por servir para veicular determinados conteúdos.
Agora que a sua obra é solicitada em muitos países, em que projetos anda a trabalhar?
Estou no processo de abrir um pequeno atelier em Hong Kong que irá servir para desenvolver no próximo ano três a quatro exposições em instituições, na Ásia, na Europa e, possivelmente, nos Estados Unidos. Para além disso, a prioridade será voltar à raiz do trabalho e voltar a desenvolver projectos com comunidades.